sexta-feira, 28 de março de 2008

Vendaval - Fernando Pessoa




Ó vento do norte, tão fundo e tão frio,



Não achas, soprando por tanta solidão,



Deserto, penhasco, coval mais vazio



Que o meu coração!


Indômita praia, que a raiva do oceano



Faz louco lugar, caverna sem fim,



Não são tão deixados do alegre e do humano



Como a alma que há em mim!

Mas dura planície, praia atra em fereza,



Só têm a tristeza que a gente lhes vê



E nisto que em mim é vácuo e tristeza



É o visto o que vê.

Ah, mágoa de ter consciência da vida!



Tu, vento do norte, teimoso, iracundo,



Que rasgas os robles — teu pulso divida



Minh'alma do mundo!


Ah, se, como levas as folhas e a areia,



A alma que tenho pudesses levar -



Fosse pr'onde fosse, pra longe da idéia



De eu ter que pensar!


Abismo da noite, da chuva, do vento,



Mar torvo do caos que parece volver -



Porque é que não entras no meu pensamento



Para ele morrer?


Horror de ser sempre com vida a consciência!



Horror de sentir a alma sempre a pensar!



Arranca-me, é vento; do chão da existência,



De ser um lugar!


E, pela alta noite que fazes mais'scura,



Pelo caos furioso que crias no mundo,



Dissolve em areia esta minha amargura,



Meu tédio profundo.


E contra as vidraças dos que há que têm lares,



Telhados daqueles que têm razão,



Atira, já pária desfeito dos ares,



O meu coração!


Meu coração triste, meu coração ermo,



Tornado a substância dispersa e negada



Do vento sem forma, da noite sem termo,



Do abismo e do nada!